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Sensação de Vazio

DE ONDE VEM A SENSAÇÃO DE INCOMPLETUDE?

Luciene Donato Benevides

Psicóloga | Psicanalista



A ideia de que somos incompletos está profundamente conectada ao desejo. Na psicanálise, especialmente na visão de Lacan, a falta é algo fundamental na vida humana. Desde que nascemos, somos marcados por uma separação, como quando nos desligamos do corpo da mãe. Essa perda inicial cria uma sensação de falta que nos acompanha para sempre. E essa falta não é só de coisas materiais ou emocionais; é algo que nos empurra a buscar constantemente algo que possa nos completar, mesmo sabendo que nunca vamos encontrar essa completude total.


Essa incompletude nos faz reconhecer que sempre há algo faltando, o que nos leva a buscar experiências, relações e formas de satisfação que possam preencher esse vazio. Durante a infância, por exemplo, enfrentamos várias situações em que percebemos que não podemos ter tudo o que desejamos, o que reforça essa sensação de falta. Freud destacou que essas frustrações na infância moldam nossa estrutura psíquica. Quando não conseguimos satisfazer totalmente nossos desejos mais básicos, como os de afeto, alimentação ou independência, essa sensação de falta persiste ao longo da vida.


Portanto, o "vazio" não é apenas uma ausência, mas um conceito fundamental que define quem somos. Esse vazio é parte da experiência humana e afeta como nos enxergamos e nos relacionamos com o mundo. Ele conecta a falta e o desejo, moldando nossa identidade e as dinâmicas das nossas relações.


Desde pequenos, ao interagirmos com pessoas importantes, como os pais, começamos a perceber o que nos falta e a desejar a partir disso. O desejo nasce da interação com o outro, que pode ser representado não só pelos nossos cuidadores, mas também pela sociedade e cultura que nos cercam. Essa troca é essencial, pois nossa identidade se forma através das frustrações e desejos que experimentamos, e a falta que sentimos se reflete em como nos relacionamos e buscamos ser reconhecidos.


A falta é necessária para que o desejo exista, e o vazio que sentimos é o que mantém essa busca viva. O desejo humano nunca pode ser totalmente satisfeito porque está sempre ligado a essa experiência de falta. Isso significa que a vida se torna uma busca contínua por algo que possa preencher esse vazio, seja amor, reconhecimento ou pertencimento. A incompletude, então, nos impulsiona a buscar experiências que deem sentido à nossa existência.


Por outro lado, esse vazio também pode ser visto como um espaço cheio de possibilidades. Em vez de encará-lo como uma fraqueza, podemos vê-lo como um campo fértil para o crescimento e o desenvolvimento pessoal. O vazio nos convida a refletir sobre nossas experiências, a reconhecer nossas necessidades e a buscar maneiras de preencher esse espaço de forma significativa. Essa busca pode levar a novas relações, criações artísticas e descobertas que ampliam nossa compreensão de nós mesmos e do mundo.


Assim, o vazio não deve ser visto apenas como algo negativo, mas como uma força que nos impulsiona a nos desenvolver e melhorar continuamente. Ele se reflete também no plano social, onde nossas interações são muitas vezes motivadas pelo desejo de aceitação e reconhecimento. Essa busca coletiva por reconhecimento e inclusão tem impulsionado movimentos sociais e mudanças na sociedade. Um exemplo claro disso é o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos durante as décadas de 1950 e 1960. Liderado por figuras como Martin Luther King Jr., Rosa Parks e muitos outros, o movimento foi uma resposta à falta de direitos e ao tratamento desigual sofrido pela população afro-americana. A luta pela igualdade, pela eliminação das leis segregacionistas e pelo reconhecimento da dignidade e humanidade dos indivíduos negros transformou profundamente a sociedade americana, resultando em mudanças significativas, como o fim da segregação legal e a aprovação de leis que garantem direitos civis e de voto para todos os cidadãos, independentemente de sua raça. Este movimento exemplifica como a incompletude sentida por um grupo social, que se traduz em uma falta coletiva, pode levar a ações concretas que promovem justiça e inclusão na sociedade como um todo.


No campo da ciência e do conhecimento, a incompletude é o que impulsiona o avanço. O reconhecimento de que sempre há algo mais a ser explorado ou compreendido gera curiosidade e inovação. A ciência, na essência, responde à falta de saber humano. As teorias surgem para preencher lacunas no conhecimento, e as investigações científicas partem da ideia de que há mistérios a serem resolvidos. Esse impulso é essencial para o progresso.


A arte e a cultura também florescem a partir da incompletude. Artistas e escritores muitas vezes expressam em suas obras a busca por significado e a luta contra o vazio que todos nós carregamos. Essa busca se traduz em criações que refletem nossas aspirações, dilemas e fragilidades. A incompletude se manifesta na arte, permitindo que nos conectemos com os outros e exploremos emoções que ressoam profundamente.


A música “Eu Te Devoro”, de Djavan é um bom exemplo de como o artista sublima a incompletude. Nesta canção, o eu lírico expressa o desejo intenso de se fundir com a pessoa amada, revelando o vaxio que sente sem ela e o desejo de preenchê-la através do amor.


Por isso, a ideia de incompletude não é apenas uma característica do ser humano, mas uma força que molda nossa identidade e nos impulsiona a buscar significado, tanto individualmente quanto em nossas interações sociais e na busca pelo conhecimento. Essa tensão entre o que somos e o que queremos ser nos torna únicos e nos une na busca por avanços que transcendem a condição individual.


O vazio também nos acompanha ao longo da vida, assumindo novos significados em diferentes fases. Na juventude, pode representar uma busca por identidade e pertencimento, enquanto na vida adulta pode se manifestar como questionamentos sobre o propósito das nossas realizações. Essa plasticidade do vazio mostra que ele é um componente dinâmico da subjetividade, influenciando nossas escolhas, relações e autoimagem ao longo do tempo.


Reconhecer a importância do vazio na formação do sujeito nos leva a entender que cada um de nós carrega uma história de desejos e faltas que moldam quem somos. A incompletude nos conecta a uma dimensão maior da condição humana, onde experiências de busca, frustração e desejo revelam a complexidade do ser. Em vez de ver o vazio como algo negativo, podemos aceitá-lo como parte da nossa jornada de autodescoberta e construção da subjetividade. Ele nos estimula a buscar sentido, significado e conexão com os outros.


Ao reconhecer o vazio em nossas vidas, entendemos que ele é uma parte constitutiva da experiência humana, manifestando nossos desejos e anseios. Isso nos ajuda a aceitar a natureza dinâmica das nossas emoções e experiências. Em vez de temer ou evitar o vazio, podemos enfrentá-lo e usá-lo como um espaço fértil para a criatividade, inovação e crescimento. Dessa busca por significado no vazio, surgem novas ideias, conexões e oportunidades de desenvolvimento pessoal e social.


Essa busca nos permite cultivar uma autonomia emocional e, ao mesmo tempo, nos conectar de maneira mais autêntica com os outros. Todos nós compartilhamos essas experiências de incompletude e desejo. Essa empatia pode criar comunidades mais solidárias, onde as fragilidades são acolhidas e celebradas. Ao abraçar o vazio, nos tornamos mais conscientes de nossas próprias lutas e aspirações, e encontramos um terreno comum que nos une na busca por preenchimento e significado.


A COMPULSÃO COMO UM ARTIFÍCIO PARA LIDAR COM A FALTA


A compulsão pode ser compreendida como uma resposta direta à falta ou ao sentimento de vazio que um indivíduo vivencia em sua vida emocional e psicológica. Esse estado frequentemente surge de experiências de perda, abandono, rejeição ou outras formas de ausência significativa, resultando em uma lacuna no universo interno do sujeito.


O vazio emocional pode manifestar-se de diversas maneiras, como a perda de um ente querido, separações, a falta de conexões emocionais significativas ou a insatisfação com a vida. Como destaca Freud, “toda a experiência do homem é uma tentativa de preencher a falta” (FREUD, 1920). Essa sensação de falta provoca um profundo anseio por preenchimento, frequentemente transformando-se em comportamentos compulsivos.


Nesse contexto, a compulsão atua como um mecanismo de defesa inconsciente contra a dor do vazio. Ao se engajar em comportamentos repetitivos ou compulsivos, como comer em excesso, usar substâncias, fazer compras em demasia ou manter relações instáveis, o indivíduo tenta preencher essa lacuna. Essas ações tornam-se uma forma de fuga ou distração, evitando a confrontação direta com sentimentos dolorosos que acompanham a ausência. Segundo Winnicott, “a compulsão atua como um substituto para o que não foi elaborado em experiências anteriores” (WINNICOTT, 1971), refletindo uma estratégia para lidar com a dor emociona


Lacan, por sua vez, amplia a compreensão da compulsão ao conectá-la diretamente com a falta e o desejo. Em suas formulações, a compulsão pode ser vista como uma tentativa de preencher o vazio criado pela falta fundamental – a falta-a-ser (manque-à-être), que é constitutiva do sujeito. Lacan afirma que "o sujeito é essencialmente falta, um ser que busca incessantemente preencher o que lhe falta, mesmo sabendo que essa plenitude é inatingível" (LACAN, 1966, p. 250).


Nesse sentido, a compulsão pode surgir como uma forma de lidar com esse vazio insuportável, uma busca contínua por algo que nunca será plenamente alcançado.


A compulsão, então, se manifesta como um comportamento repetitivo e muitas vezes autodestrutivo, que visa atenuar o sentimento de vazio ou angústia. O sujeito recorre a atos compulsivos – seja através do consumo excessivo, dos rituais obsessivos ou de outras formas de comportamento repetitivo – na tentativa de preencher essa lacuna.


No entanto, como observa André Green, "a compulsão nunca consegue satisfazer o desejo subjacente, mas apenas perpetua a sensação de vazio, criando um ciclo vicioso" (GREEN, 1988, p. 132).


Portanto, à luz da psicanálise, a compulsão pode ser entendida como uma defesa contra o vazio existencial, uma tentativa de preencher a falta que é inerente à condição humana. Contudo, essa busca incessante, na verdade, reforça a sensação de incompletude, mantendo o sujeito preso em um ciclo de repetição que nunca atinge a satisfação plena.


A manifestação da compulsão à repetição na vida real pode ser observada em diversos comportamentos desajustados. Por exemplo, pessoas que vivenciam traumas de infância podem se ver repetindo padrões de relacionamentos disfuncionais na vida adulta, como escolher parceiros que reencenam as dinâmicas negativas do passado. Esse padrão pode ser uma maneira inconsciente de tentar dominar a dor associada à experiência original, mesmo que isso leve a um sofrimento adicional.


Outra forma em que a compulsão à repetição se manifesta é em vícios comportamentais, como o uso excessivo de substâncias, compras compulsivas ou alimentação descontrolada. Nesses casos, o indivíduo pode, involuntariamente, tentar preencher um vazio emocional por meio dessas ações, criando um ciclo em que a gratificação inicial rapidamente se transforma em arrependimento e mais vazio.


O comportamento compulsivo, portanto, se torna uma tentativa frustrante de alcançar uma satisfação plena que nunca é atingida.

A relação entre desejo e compulsão, evidentemente, retrata a luta do sujeito em lidar com suas frustrações e a escassez de realidades que satisfaçam plenamente suas necessidades. O desejo, como ensina Freud, é frequentemente impossível de ser realizado em sua plenitude. Isso se torna ainda mais evidente na visão lacaniana, onde o desejo nunca é completamente satisfeito e está sempre em busca de uma nova realização. Como Lacan observa, "o desejo é insaciável; sua estrutura é de uma falta que nunca será totalmente preenchida" (LACAN, 1977).


Nesse contexto, a compulsão se torna uma maneira de tentar encontrar satisfação mesmo que provisória ou ilusória. Os comportamentos compulsivos, então, são respostas desajustadas às frustrações do desejo, resultando em um ciclo vicioso que não só não alivia o vazio, mas frequentemente o intensifica. Freud explica que essa dinâmica é impulsionada por “uma forçada necessidade de repetir experiências que tentam reestabelecer um nível de prazer que foi perdido” (FREUD, 1920).

Portanto, a busca pela satisfação do desejo, ligada ao princípio do prazer e ao conceito de gozo, mostra como a compulsão aparece como um comportamento paradoxal. Embora o indivíduo se mova em direção à satisfação, o que frequentemente encontra é um caminho que, longe de extinguir a falta, perpetua um ciclo de repetição e descontentamento. A utilização da psicanálise como um caminho para entender essas dinâmicas se revela essencial, já que oferece ao sujeito um espaço para reavaliar suas experiências, desenvolver uma nova compreensão sobre suas frustrações e construir formas mais saudáveis de busca pela satisfação.



Referências:


  • FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1920.

  • GREEN, André. La causalité psychique. Paris: Éditions de Minuit, 1988.

  • LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.

  • WINNICOTT, Donald. A criança e seu mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1971.

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